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Uma imagem e um artifício
por Fabrício Vaz Nunes*

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

À primeira vista, é como se estivéssemos diante de misteriosos vestígios de um passado distante, mítico, arcaico. Os quadros de José Antonio de Lima são como fragmentos de uma caverna antiquíssima, marcada pelas mãos de homens primitivos e rudes. Parece que o artista busca reproduzir, com pasta de papel e pigmentos naturais, a aparência da arte incipiente daqueles tempos. Surgem figuras estranhas, descontínuas, irreconhecíveis: vemos estes signos, mas não entendemos seu significado. O mistério persiste nos totens que parecem feitos de aço ou pedra por alguma civilização perdida, assim como nos instrumentos, cuja função desconhecemos. O artista fabrica, ainda, casulos que parecem ter sido simplesmente colhidos no mato — mas qual inseto estranho morou ali, não sabemos.
Tudo isso, porém, é aparência. Uma segunda observação, mais atenta, revela que existem sinais inscritos na superfície dos totens: símbolos geométricos, com triângulos, círculos e quadrados sobrepostos, que parecem ter sido colocados ali há tempos. Estes rabiscos nos remetem ao grafismo dos quadros: há ali uma linguagem comum, ainda que desconhecida. Do plano da tela para estas grandes formas desajeitadas, tridimensionais, há apenas uma mudança de escala e de dimensão. Permanece, sempre, o mesmo processo gerador de propostas formais: a linha quebrada, oscilante; os espaços vazios, as pausas, a interrupção do desenho; a alternância entre cheios e vazios. Isso indica que a primeira preocupação do artista é com a forma: em todos os seus objetos, pode-se perceber a presença de um vocabulário marcante de linhas, volumes, texturas e cores características.
Ao fazer da forma seu principal objeto de estudo e manipulação, José Antonio escapa da influência das tendências conceituais, que vêm ganhando importância no Brasil desde suas primeiras aparições na década de 60, com bons e maus resultados. Neste sentido, ele é um artista tradicional: faz arte de forma, cor, linha, volume. Não questiona o fazer artístico, o estatuto da obra: estes são fatos já colocados de antemão. No seu tratamento, porém, a forma parece tornar-se sempre uma emanação deste passado fictício, que na verdade é instituído como artifício. Seus instrumentos são, na realidade, falsos. Os totens, que parecem feitos de pedra ou metal, são na verdade leves, feitos de madeira, tela colada, pasta de papel, pigmentos. Toda a obra de José Antonio é feita de aparência: ela nos engana, nos pega pela mão para passear por um mundo fantástico que é, na verdade, cenográfico.
O segredo desta ilusão está na escolha dos materiais: José Antonio diz que “todo material é orgânico” — ou seja, vivo. Sua preferência pela pasta de papel, pelo ferro e pelo tecido é determinada pelo fato de que estes são materiais em lenta e constante transformação, como tudo na natureza, ou na existência. A obra, assim, nunca está verdadeiramente terminada: o tempo se encarregará de modificar o seu aspecto e, talvez, de destruí-la. Por outro lado, a manipulação destes materiais parece reconstituir neles um aspecto natural ou primitivo: é assim que a grade industrializada se transforma em casulo natural, como as vigas de metal se transformam em instrumentos primitivos.
A imagem do trabalho humano que transforma a natureza é o grande tema da arte de José Antonio. A imagem que ele propõe, no entanto, é na verdade invertida: na sua obra, os produtos humanos são levados constantemente a uma equiparação com o seu estado natural, orgânico e concreto: trata-se, sempre, da reconstituição de um estado primitivo em que o artificial se reencontra com o natural. Daí a importância da imagem do círculo, recorrente em vários dos seus trabalhos, que traz consigo a idéia do tempo cíclico — mas também é a da serpente que devora o próprio rabo. Sabemos que tudo é aparência: a imagem da coisa torna-se a própria coisa. Esta é a ancoragem contemporânea de José Antonio: ele sabe, no fundo, que vivemos em um tempo em que a imagem é mais importante que a própria realidade.
Nas Catedrais Espaciais, ele desenvolveu uma pesquisa formal que parte do círculo, do seu desenvolvimento e continuidade no espaço. Na vivência artística de Faxinal do Céu, em 2002, o artista teve a oportunidade de trabalhar nesta série em contato direto com a natureza: o galpão tinha ficado pequeno demais e foi mais fácil trabalhar ao ar livre, com a ajuda de uma árvore que servia de apoio para a construção de ferro e tecido. O artista, então, pendurou a obra sobre um lago, onde ela pareceu estranhamente confortável, como se tivesse sido feita para estar lá desde o princípio. É que o lago refletia a sua imagem, restituindo a sua condição inicial, que é precisamente a de ser uma imagem e um artifício, no qual a natureza é reinventada: talvez a imagem de um tempo perdido, mas que na verdade jamais existiu.

Publicado em 2004, no livro Narrativas, de José Antonio de Lima.

*Crítico, curador e pesquisador de arte, é graduado em Gravura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná – EMBAP (1999) e mestre em História da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (2004). Atualmente, é professor assistente da EMBAP e doutorando em Literatura na Universidade Federal do Paraná – UFPR.

 

“O artista fabrica, ainda, casulos que parecem ter sido simplesmente colhidos no mato — mas qual inseto estranho morou ali, não sabemos.”

Toda a obra de José Antonio

é feita de aparência: ela nos engana, nos pega pela mão para passear por um mundo fantástico que é, na verdade, cenográfico.

O curador Fabrício Vaz Nunes coordenando a montagem da exposição Tramas, no Museu da Água, Lisboa, Portugal.

The curator Fabrício Vaz Nunes, coordenating the Tramas exhibition installation, at Água Museum, Lisboa, Portugal.

Exposição Tramas no Memorial da Cidade, Curitiba, PR, 2007.

Tramas exhibition, at City of Curitiba Memorial, Curitiba, PR, 2007.

Incentivo:

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