Uma Crônica do Zé para o Zé
José Carlos Fernandes*
Lembro da primeira vez que vi o Zé (José Antonio de Lima). Foi há coisa de dez anos, na redação da Gazeta do Povo. Dias antes, eu havia recebido um telefonema da pesquisadora de arte Maria Cecília Araújo de Noronha. Foi sem rodeios. “Você precisa conhecer o trabalho desse rapaz. Vou dizer para ele ir até aí.” E desligou. Como todo mundo que foi aluno da Cecília na Escola de Belas Artes, nem de brincadeira pensei em ignorar o pedido. Afinal, quem falava do outro lado da linha era ninguém menos do que a “Ciça da História da Arte”, uma unanimidade em la dolce vita estudantina, lendária por seus incontáveis slides, em especial os do Barroco Italiano.
Pois não era blefe. O rapaz, que já tinha passado dos 40, chegou com um punhado de pequenas fotos de seu trabalho, pouca prosa e simpatia no fiel da balança. Era o tipo de quem compraríamos um carro. Falamos quase nada, porque a pauta não ficou comigo. Vi o Zé descer a escada para ser entrevistado por outro – Putz! E o pior – depois daquele dia, parecia só dar José Antonio de Lima, como se de repente todas as galerias e museus de Curitiba tivessem descoberto o artista vindo do Norte do Paraná, que usava uma massa de papel jornal para produzir texturas de fina estampa, com pinta de ferrugem, entre outros truques que faziam alusão à passagem do tempo. Melhor que isso – para desespero dos críticos vitimados por enxaqueca crônica, todo mundo adorava.
Dali em diante, fiquei assistindo à trajetória do Zé de camarote, nos bastidores da imprensa cultural, levando bola na trave toda santa vez em que achava que iria entrevistá-lo e nada de dar certo. Pelo menos serviu de treino. Pude perceber que, literalmente, ele foi incluído no curto circuito local – uma delícia de ver o Zé – e ainda que bem longe de Angola, desviava dos campos minados espalhados pela redondeza. Sim, nós temos explosivos escondidos no solo. Mas penso que não houve uma trincheira que tenha lhe negado abrigo, ainda que o seu canto tenha sido sempre o mesmo, o ateliê no fundo de casa, próximo ao Parque São Lourenço, “na Rua Francisco Krainski, logo que a José Brusamolin acaba”, como ele mesmo costuma indicar aos visitantes de primeira viagem.
E foi preciso mesmo uma viagem para que a pauta perdida fosse vingada. Passaram-se uns pares de anos até que pude seguir atento pela Rua Mateus Leme para não perder a descidona escondida à direita, que leva até à casa-ateliê do Zé Antonio. Era um sábado gelado de junho – eu não ia comprar um carro dele, o que não seria má idéia. Afinal, eu tinha de esquentar motor para vencer a sua fala, que me parecia muito breve, e me exigiria trabalho dobrado para fazer por merecer uma página de jornal. Mas que bobagem a minha – nem foi preciso usar algum método de arrancar declarações a fórceps. Mesmo que o Zé não tenha falado pelos cotovelos – o que seria sinal de febre alta –, entregou o ouro numa espécie de “esta é a sua vida” sem câmeras de tevê ou lágrimas prontas para serem esguichadas. Quando tudo terminou, contornei o Parque São Lourenço e voltei para casa com cara de bobo alegre. Foi uma bela página de jornal, aquela. Merecida. E aqui cabe um parêntese.
Quando os artistas disparam sem misericórdia frases do tipo – “Ah, meu filho, isso é lá com os críticos. O que eu tenho para dizer está dito na minha obra” –, não se pode condená-los, só odiá-los em silêncio. É dureza. Ao jornalista, além da informação sob medida, claro, cabe as histórias, que possam levar, “uau”, a admirável complexidade da arte aos mortais, como a Dirce da padaria ou o Jurandir do estacionamento. É preciso também alguma habilidade com metáforas que possam traduzir para o homem das ruas aquele palavrório que, de tão elevado, faz até doutos e sábios se sentirem na Bacia das Almas. Quando não há troca, é de respirar no cano de escape.
Com o Zé no seu próprio território, deu para passar batido pela sessão tortura das entrevistas em que o outro lado não entende que uma pergunta é uma deixa – simples como isso. O resto, bem, o resto fica com a arte da conversa. Foi assim. Enquanto baixava do sótão uma quantidade tão grande de esculturas, telas e desenhos que faria brilhar os olhos dos donos de transportadora, falou de como tudo começou, sem rapapés, vernizes ou afetações. Recapitulou da infância rural, um banquete com milho, feijão, café e até cem litros de leite retirado das vacas num dia. E o dia “D”, quando o povo de Grandes Rios, cidadezinha onde vivia, perto de Ivaiporã, no Norte do estado, descobriu que o garoto vindo ainda pequeno das Minas Gerais levava jeito para o desenho que só. Nem bem tinha desembestado, aos 15, 16 anos, e dá-lhe ser requisitado para os cartazes das quermesses e quetais – sem que ninguém soubesse, sob risco de sacrilégio, que uma de suas referências visuais eram aqueles catecismos de sacanagem à Zéfiro, alegria da petizada, ontem, hoje e sempre. Por essas trilhas, o menino Zé acabou trocando a enxada pelos desenhos, pois tinha mais o que fazer do que encher a mão de calo. Fez até paisagem para a porta do açougue, do que se deve agradecer ao povo no alto-falante da praça da matriz. Ainda é tempo.
Depois veio Londrina, o supletivo, a faculdade de Jornalismo; e Maringá, a assessoria na Emater, o jornal Terra, cuja pauta tinha bandeiras – do perigo da transgenia ao monopólio das sementes. Não é nada, não é nada, e essas passagens extra-ateliê vão trazendo o artista para tão perto dos joões e das teresas. São informações que ocupam os espaços vazios daquilo que vemos sem ter como explicar. O José Antonio de Lima da roça, dos cartazes, dos jornais, faz sempre o maior sentido com o José Antonio de Lima das armações de ferro e das telas monumentais. É uma conversa só. Melhor, inteira.
A bordo dela, vai-se de um lugar a outro. Da vida comum aos campos da memória, de onde nunca se volta do jeito que partiu. A arte menor do jornalismo até que ajuda a traduzir essa maratona. A gente ouve, associa, deduz, edita aqui e ali, arrisca um bocadinho, imagina, pois é de direito, e está em ponto de bala para seguir adiante. Dá até para sair contando – o que é bom demais: “Aí, Dirce, Jurandir, prestem atenção: se vocês acham que a arte do José Antonio de Lima lembra aqueles desenhos que a gente fazia na terra com um graveto, quando era criança, é isso mesmo. Além de rabiscar qualquer coisa que desse na telha, encontrávamos em cada camada pedaços de papel, cacos de vidro, minhocas e tantas e tantas tonalidades de marrom à medida que a luz do céu vinha e se escondia. Dava vontade de não parar mais de cavoucar para ver o bicho que dava, até quem sabe chegar lá no Japão, onde é noite quando aqui é dia. Pois o Zé não parou até hoje com esse negócio de fazer expedições ao centro da Terra.”
Tem mais. Essa história está nas camadas de chão, mas também sobe pelas paredes. Sabe aquele paiol do fundo de casa, abarrotado de rolos de arame, madeira velha, canos de PVC, banquinho sem pé, tralhas que a gente jura que um dia vai precisar? Pois é, tinha no sítio dos Lima. Vai ver que é de lá que o artista tirou a idéia de aproveitar ferro-velho e sacos de estopa para fazer suas esculturas-móbiles, destino das sobras. Como o cara é artista, já viu, a sucata virou do avesso, e virou até notícia de um lugar comum. “Meu avô dependurava tudo que é cacareco em volta da casa”, conta. A gente podia dizer que esse material é object trouvé. Ele chama algumas dessas peças de “catedrais” – e elas são mesmo santuários feitos de arame e lona, movendo-se, amarelando, enferrujando, sumindo, como manda o ciclo da natureza. Parece que cada peça está viva. Vai ver, está mesmo. Não à toa a Ciça ligou para Deus e o mundo, dizendo “Vocês precisam ver...”. Precisamos.
Noite dessas, desci de novo a Rua José Brusamolin para ver de perto o ateliê do Zé. Quase tudo igual como era antes – há peças até o teto e dá gastura de ver ele baixando todas aquelas obras enormes, que mal alcança com os braços abertos. No vaivém, é como se ele estivesse de novo removendo as camadas de terra – aquelas camadas da historinha acima – e nos fazendo lembrar o quanto essa idéia se parece com os percursos da lembrança e do esquecimento – mecanismo sem o qual a gente ia bater pino. O esquecido e o lembrado viram tela, viram peça, viram catedral. O povo olha para baixo, para o alto, vai recordando sem pressa e sem muitas palavras das coisas que deixou um dia no sótão. Como um sótão não se forma da noite para o dia, quer-se olhar mais um pouquinho.
É o que basta, no ateliê do Zé, para se sentir em casa, se sentindo um pouco parte daquele museu da vida privada, em cujo espaço as peças vão respirando e envelhecendo junto com o dono. Tudo o que é sobra e resto, a essa altura, é como se fosse objeto sagrado, paisagem a ser preservada, álbum de retratos, quarto de casal, envelope fechado que a gente não abre, mas fica imaginando o que tem dentro. Dá-lhe imaginar o que é, o que é cada casulo, cada catedral. De repente, essa arte de texturas brotadas do chão causa uma felicidade besta. E como têm palavras enterradas nessa história. Coisa do Zé, que, no final das contas, não parou de cavoucar. E leva a gente para a lida com ele.
Publicado no livro Visibilidades, de José Antonio de Lima, em 2006.
*Professor do Curso de Comunicação Social – Jornalismo na Universidade Federal do Paraná –UFPR e do Studium Theologicum de Curitiba. Jornalista em atividade no jornal Gazeta do Povo, em Curitiba, desde 1989, onde atua como editor, repórter especial, cronista, além de ter sido editor do suplemento de cultura Caderno G. Lecionou durante 15 anos no curso de Comunicação Social – Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Possui graduação em Gravura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná - EMBAP (1993), graduação em Jornalismo pela UFPR (1993), Filosofia pelo Cearp de Ribeirão Preto (SP), Especialização em História da Arte no Século XX, pela EMBAP (2000). Mestre em Estudos Literários pela UFPR (2006) e Doutor em Estudos Literários pela UFPR (2012). É professor do curso de jornalismo da UFPR.

O artista em seu ateliê em Curitiba, PR, 2009.
José Antonio de Lima, in his studio, Curitiba, PR, 2009.