O Reino Suspenso de José Antonio de Lima
Por Katia Canton*
Seu olhar curioso e profundo está voltado para as pequenas coisas, os cantos esquecidos do mundo, as insignificâncias. José Antonio de Lima vislumbra a textura do asfalto, as formas dos bueiros na rua, a borracha gasta de pneus, ao mesmo tempo em que fita as árvores, as planícies, as pedras, as raízes.
O artista persegue nas paisagens mundanas a construção de uma memória generosa, pertencente a um tempo e um espaço universais, capaz de abraçar a condição humana na totalidade de suas contradições. E ele se põe a seguir tal empreitada com serena simplicidade.
Da infância vivida no meio rural, José Antonio, mineiro de origem, resgatou a potência dos materiais, dialogando fluentemente com a terra, a madeira, o ferro, o arame e o papel artesanal.
Em suas mãos, esses elementos são moldados, amarrados, oxidados e se tornam possibilidades de construção de um inusitado mapa de afetos. É um mapa quase secreto, repleto de simbologias, escrito em uma caligrafia estranha e ancestral, tingida de tons ferrosos, lembrando que a ferrugem é a cor do tempo que passa.
Decifrado, esse mapa passa a guiar o observador à chegada de um reino à parte, meio animal, meio vegetal, meio artificial. O reino da biologia estética ou da geometria biológica.
No mundo de José Antonio de Lima, o tempo se desprega de sua lineariedade e assume formas espiralizadas. Torna-se um tempo fluido, mole, que circula, desliza, se embaraça e se embaralha em sua própria fisicalidade. É o tempo suspenso no espaço. E é um espaço que se desprega das narrativas de uma história específica de vida e se expande pela vastidão de um não-lugar.
Pois exatamente nesse tempo/espaço suspensos, no meio do caminho, limiar de todas as coisas, encontra-se a arte de José Antonio. Trata-se de uma arte que é ao mesmo tempo pintura e escultura, extrapolando limites que teimam em rotular o mundo por suas conhecidas e exclusivas técnicas.
É uma arte que é ao mesmo tempo passado e presente. Presente, posto que é feita hoje, construída na ação do artista que se conecta e interage com o mundo contemporâneo. Mas é também passado, pois evoca a condição totêmica das matérias, os arquétipos das imagens de reverenciar deuses, figuras que retêm a memória remota de ações vividas.
A arte de José Antonio é ainda individual e coletiva. Individual, feito que é realizada pelas mãos únicas do artista. E coletiva, pois alude aos procedimentos artesanais que induzem à reprodução anônima e generosa da tradição popular.
Em sua obra, o artista ainda condensa e confronta os conceitos de natureza e cultura. José Antonio toma lições primordiais com a terra, que ele remexe e cavouca, para apreender cores, texturas, veios. Constrói seus corpos de terra e madeira, pó de ferro e arame, materializa e edifica o que vem da terra.
Mas suas construções são artifícios. Aludem e iludem. Fabricam ferramentas, armas, casulos, dejetos, totens, colméias, pás, chaves, utensílios, ranhuras. E também criam escrituras, ideogramas estranhos que se materializam no discurso de um registro imaginário.
São todas memórias das coisas da vida.
No conjunto de sua obra, o artista faz um obsessivo mapeamento da vida, devolvendo a cada ato um sentimento de corpo, receptáculo de potência e ação. Plantando seus objetos híbridos, José Antonio cria um reino que evoca e expande a história das pequenas coisas. E assim, recicla um testamento afetivo, impregnado de materialidade e de colorações terrosas e ferrosas, comprovando em si a natureza cíclica do tempo, da terra, da vida.
Publicado em 2001, no livro José Antonio.
*Formada em Jornalismo pela Universidade de São Paulo (1986), com diploma de estudos de literatura e civilização francesa pela Université de Nancy II (1986), mestrado em Performance Studies pela New York University (1989) e doutorado em Artes Interdisciplinares pela New York University (1993). É livre-docente em Teoria e Crítica de Arte pela ECA/USP. Já foi chefe da Divisão de Exposições Temporárias, da Divisão de Curadoria e da Divisão de Arte e Educação do Museu de Arte Contemporânea da USP, onde atualmente é professora associada, atuando na Divisão de Arte e Educação. É docente no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP. Também é escritora de livros de arte, literatura infantil e juvenil, poesia e performance. É parecerista ad doc da FAPESP.

Salvo um verso,
o que era apenas caligrafia
devolve-se do rascunho
à paisagem,
a parte que cabe às árvores
e o que sobrar
ao menos que brotem
pedras do grafite.
(Marco Antonio Saraiva,
“Reciclar” in Esses Poetas...)
Exposição (Im)permanências, na Casa Andrade Muricy, Curitiba, PR, 2012.
(Im)permanências exhibition, at Casa Andrade Muricy, Curitiba, PR, 2012.

Exposição Interconectividades, no Centro Cultural Correios, Rio de Janeiro, 2010.
Interconectividades exhibition, at Correios Cultural Center, Rio de Janeiro, 2010.