Ferramentas e Armas
Por Luíza Interlenghi*
Em contraponto com a cultura do espetáculo, que a tudo consome esteticamente — desde a miséria e a desigualdade social até as lutas étnicas —, a sobriedade e a introversão predominam nas obras recentes de José Antonio de Lima.
Em contraste com o planejamento hightech das imagens publicitárias, em que a intensidade do viver parece rasa, efeito de superfície, frágil demais para dar lastro à existência, amarrações, modelagem e oxidação são procedimentos rústicos com os quais o artista deposita camadas de matéria, cria relevos em suportes planares e corpos tridimensionais.
A utilização de materiais não convencionais é um campo aberto desde a grande crise da representação, que levou à quebra da experiência estética em diversas linguagens e meios expressivos. Já nos anos 60, com a Art Povera italiana, entre outros movimentos, recorreu-se sistematicamente a materiais não artísticos, “pobres”, o que ampliou o poder de comunicação da arte e radicalizou o processo de estetização do real.
A arte atual, portanto, pode ser realizada com os mais variados meios: desde potentes equipamentos digitais, até a tradicional tela de pintura e as fibras do pincel. Vencida a distância histórica, hoje, a extensão do campo estético vai muito além dos limites da arte, atravessa praticamente todas as instâncias do viver e participa dos processos de alienação e controle social. A estetização do conflito leva a uma anulação das diferenças e à experiência da imagem como fetiche. Enquanto o processo de exclusão social, inerente à globalização, ganha contornos mais definidos (com o MST, por exemplo), freqüentemente, as imagens prevalecem sobre o conteúdo das lutas específicas a elas associadas. Neste contexto o trabalho de José Antonio torna-se significativo, pois pretende, a seu modo, escapar da sedução da imagem-fetiche.
Com a adoção de procedimentos artesanais, o artista procura reequilibrar as relações entre o individual e o coletivo, situar a técnica ao alcance da mão, na medida do corpo. A exploração de formas primárias que recriam um tempo mítico, original, oferece resistência à corrosão da experiência do espaço e do tempo, provocada pelos sistemas digitais de comunicação e seu fortíssimo investimento na visualidade volátil.
Os trabalhos do artista revelam-se de modo sinuoso e indireto, levam o observador aos domínios da memória mais arcaica, onde a forma busca definição, estabilidade.
Na série Ferramentas e Armas, peças suspensas por cordas ou apenas apoiadas na parede — como se estivessem prontas para o uso — mostram-se metaforicamente disponíveis para o rito de desconstrução do invisível manto do poder. Em sentido inverso ao da Povera, estas obras convocam à transformação do objeto estético — a obra de arte —, em instrumento de combate.
Armas, reminiscências cravadas no real ou poemas plásticos, as obras de José Antonio de Lima, através de todos os elementos envolvidos em sua fabricação, tomam o tempo, com seu poder de transformação, como eixo de reflexão. Mas, suas manobras espaciais desenham um estreito limiar entre gestação e degradação, esgotamento e revolução, propõem um registro temporal em que tudo encontra-se por definir, paradoxalmente retomando questões atuais, quando enfrentamos os contrastes do mundo contemporâneo.
Rio de Janeiro, maio de 2000.
*Pesquisadora e crítica de arte, Luiza Interlenghi é doutoranda em História e Crítica da Arte do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010), mestre em Curatorial Studies - Bard College (2002) e em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1994). Atualmente é professora do Departamento de Artes na PUC-RJ.

2000
Pasta de papel, ferro, pó de ferro, cobre, alumínio e tecido
Paper iron, iron powder, copper, aluminium an cloth
Objetos em tamanhos variados
Objects in several sizes
143cm x 135cm