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Diálogo entre o artista José Antonio

e o curador Fernando Bini

Em 2012, o crítico, curador e professor de arte Fernando Bini passou longas horas no ateliê de José Antonio de Lima para colher subsídios que lhe permitissem produzir o material crítico e a curadoria da exposição (Im)permanências, de José Antonio de Lima, que esteve em cartaz em 2012 na Casa Andrade Muricy. Além de conhecer as Tramas em alumínio e os desenhos e pinturas de produção recente que fariam parte da mostra, o crítico “sabatinou” o artista de poucas palavras e conseguiu arrancar dele reflexões importantes sobre sua própria trajetória, obras e fazer artístico. O texto abaixo é a íntegra deste diálogo entre crítico e artista – revelador das transformações experimentadas pelo trabalho de José Antonio de Lima ao longo de 25 anos.

Fernando Bini — Você é um escultor que pinta ou um pintor que esculpe?

José Antonio — Eu sou um apaixonado pelas duas coisas, mas em momentos diferentes. Eu vou pintando, pintando, fazendo bidimensionais, até o momento em que dá vontade de fazer objetos, esculturas. Meus desenhos e pinturas são quase croquis, uma construção anterior às esculturas, o início de seu desenvolvimento. Gosto muito de criar esses objetos, produzir essas formas e movimentos, a partir dos desenhos.

FB — É isto que eu senti: seu desenho também é um problema espacial. Qual é a sua relação com a cor? Você não é um colorista e, portanto, dentro da história da pintura não é um pintor. Está vendo o que acabou de confessar? Sua relação com a cor, qual é? Por que a cor é tão difícil para você?  Você gosta da cor...

JA — Eu gosto...

FB  — Que cor? Onde você vê cor?

JA — Gosto muito dos verdes e azuis...

FB — No entanto, você domina perfeitamente os tons terra.

JA — Sim, mas atualmente, eu ando atrás dos verdes. As cores que eu gosto são externas — terras, onde vejo tonalidades, consigo manobrá-las, é bem fácil; assim como os pretos, até os negros, não são difíceis.

FB — Mas, para um colorista é duro trabalhar com o terra. Vamos lembrar um colorista (de Curitiba), como Alberto Massuda, por exemplo — se ele tivesse que trabalhar em preto e branco, e inclusive ele fez desenhos assim, seus trabalhos perdiam a consistência, porque ele era um colorista; então ele punha uma cor e resolvia o problema. O nosso amigo Josué Demarchi (artista plástico de Curitiba) gosta muito do preto, mas ele põe o preto junto com a cor, pois antes de mais nada ele usa a cor. Agora, você tem um domínio espetacular dos terras. E os terras, sozinhos, não são problemáticos, mas o tom misturado com outras cores, lhe traz problemas.

JA — Traz.

FB — Mas, você ia falar do verde e eu te interrompi. Por que o verde?

JA — Talvez influências, pois a gente está sempre convivendo com o verde na natureza. Mas é uma cor muito difícil de trabalhar.

FB — É, é... o verde, o vermelho, e juntos pior ainda.

JA — Vejo que brincando no ateliê com essas cores, eu vou pondo, vou tirando, acrescentando um tom sobre o outro, mudando — de repente, estou com uma cor, coloco outro tom,

e vira outra coisa e preciso retrabalhar. Um colorista joga ali

e aqui e a cor é fácil. Minha questão de trabalhar só com uma cor, ou com os terras, ou no preto e branco, é que em determinado momento, parece que o trabalho está pedindo alguma coisa, uma cor — depois de um tempo de amadurecimento, vejo que não era preciso, o trabalho estava bom.

FB — Ele é um trabalho mais fechado e quando você coloca cor ele abre, se torna, digamos assim, mais alegre. Mas seu trabalho é mais reflexivo, mais centrado. A tentativa de colocar cor é para que ele fique menos angustiante, mais aberto? Por que você tem alguns trabalhos bem escuros, parecem meio angustiantes.

JA — Eu gosto do trabalho escuro, por mim, pode-se colocar preto sobre preto sobre preto que eu gosto. Vejo beleza nisso.

FB —  Você já viu os últimos trabalhos do Pierre Soulages? Ele fez uma exposição no Centre George Pompidou (Paris) no ano passado (2010). Só preto. Só que ele usa uma camada de tinta impressionante e depois ele consegue dar volume.

JA — Eu quero poder fazer isso.

FB — Você tem alguns trabalhos em que você faz isso.

JA   — No papel dá pra fazer, porque é barato. Penso em fazer em óleo, mas aí vai um volume de tinta muito grande que, para mim, ainda fica caro. Não dá pra ficar brincando com tanta tinta importada...

FB —  Em algumas de suas obras escuras em que você tentou colocar cor, no momento em que você deixou um branco, um cinza, um terra mais leve, percebeu que isso deu uma respiração bastante grande? Você tem essa capacidade. E me parece que quando falou em verde, você tem isso como memória de infância. Você viveu no campo ou sempre na cidade?

JA — Até os 18 anos morei no campo.

Construção de Catedral em Faxinal das Artes, 2002.

2004

Técnica mista

Mixed media

200cm x 20cm x 20 cm

FB —  Por isso, esse terra.  Porque, veja: grande parte de sua obra vai buscar signos originais, coisas primitivas que estão lá no interior.

JA — Algumas pessoas já me falaram disso. Então, fui pensar nos porquês. Bom, eu nasci em Minas Gerais, no meio rural, onde vivi até os oito anos, quando meu pai comprou um sítio no interior do Paraná e viemos todos para cá para plantar café, feijão, criar gado, mexer com a terra, arar...

FB — Você também?

JA — Eu também.

FB —  Está claro em sua obra que há uma paixão pela terra.

JA — Eu convivi com ela, trabalhei com a terra em um período marcante da vida, a infância e a adolescência. Construía coisas na terra como cercas, paiol, pontes e ferramentas para colheita. Lembro muito dos tecidos para colher café ou dos panos para colocar o feijão colhido no terreiro. Era um algodão grosso, branco, que depois ficava cor de ferrugem, magenta.

FB — Meu pai fazia vinho em um sitiozinho em Santa Felicidade (bairro de Curitiba onde se concentraram os imigrantes italianos e seus descendentes) e nós da família, ajudávamos. Ele estendia uma lona de caminhão, que era sempre a mesma, para colocar os cachos de uva. No Natal, eu usava a lona para fazer um presépio, toda manchada pela uva.

JA — Penso que essas lembranças todas se transformaram em símbolos. Havia ainda em Minas Gerais os utensílios e ferramentas que vieram da junção de três culturas: brancos, negros e índios. Eu era muito pequeno, mas gravei a mistura de seus utensílios de civilização, suas trocas de informação. É gozado...um dia desses alguém me contou que em uma exposição itinerante com obras do acervo do MAC (Museu de Arte Contemporânea do Paraná), realizada em uma cidade do interior do estado, havia um objeto meu; e quando alguns professores indígenas viram a peça,  a associaram a um utensílio de cortar antigo, para fazer uma bebida derivada da mandioca.

FB — O que é interessante do que você acabou de dizer é que estas imagens de infância, de repente, se transformaram em símbolos, e em uma simbologia muito rica. Talvez seja essa a questão. Mas, quando você fala do pano, eles eram brancos, no máximo ficavam marrons, não havia cor ali. E o verde era o da natureza mesmo.

JA — O próprio cafezal, a floresta... Outra coisa que acho que tem bastante influência nesse sentido é que no sítio se fazia muito polvilho, farinha de mandioca; havia ferramentas para ralar mandioca, se esticavam panos para fazer polvilho, que era colocado em latas — daí talvez venha a questão do meu interesse em fazer papel reciclado. Foi uma coisa que assimilei, não de minha família, mas da cultura ancestral.

FB —  A simbologia é retirada do campo mesmo. Mas eu pensei que você sempre havia morado em cidades. Fez jornalismo onde?

JA — Na Universidade Estadual de Londrina (UEL) Ainda na fazenda, aos 13, 14 anos, comecei a desenhar. Estou voltando à questão da pintura. Eu queria ser artista e qual a noção que se tem de artista? E artista faz o quê? Pinta. O quê? Pinta paisagens. E eu pintava paisagens rurais, cavalos, bois, pássaros. E depois, na cidadezinha próxima ao sítio, eu comecei a pintar placas para lojas, painéis, letreiros para paralamas e parachoques de caminhões... Ao terminar o ginásio, aos 18 anos, queria sair dali para estudar o colegial. Então consegui ir para Londrina para fazer artes, estudar. Fiz o primeiro ano em colégio estadual, quando uma amiga me chamou para fazer o supletivo e assim ganharmos tempo. No curso supletivo, havia um colega de sala, bem mais velho que eu, que era dono de uma pequena agência de publicidade. Ao me ver desenhando, me convidou para trabalhar com ele. Na agência, eu era um tipo faz-tudo, era bem legal. Lá me tornei um bom arte-finalista, mas mexia também com fotografia, fotolitos, criações — só não fazia rádio e TV. Decidimos tentar a faculdade de publicidade para tocar a agência e prestamos vestibular. Passamos em Comunicação, mas não saiu a habilitação em Publicidade, apenas em Jornalismo e Relações Públicas.

FB — Nem artes?

JA — Havia o curso de Educação Artística. Eu convivia com o pessoal desse curso na sala ao lado. Mas prossegui no Jornalismo. Veja bem: eu tinha a pretensão de ser artista na adolescência. Depois precisava trabalhar, já estava na agência ganhando meu salário, me desenvolvendo. Decidi então terminar o curso de Jornalismo mesmo. Me casei e tive minha primeira filha quando ainda cursava a universidade. Quando terminei a faculdade, eu e minha mulher fizemos concurso na Emater (empresa de assistência técnica e extensão rural) para a área de Comunicação Rural — passamos os dois e mudamos para Maringá. Na Emater, eu fazia de tudo na área de comunicação, no atendimento de cerca de cem municípios: programa de rádio, jornal, fotografia e até um programa de televisão em Cornélio Procópio, durante seis meses, substituindo o jornalista titular do programa.Fiquei cinco anos na Emater. Em 1986, já não estava na empresa, fazia um jornal alternativo rural, de esquerda, utilizando ainda o mailing da Emater e seus canais de distribuição... E fazia no tempo livre minhas pinturinhas. Foi nesse ano que enviei uma delas para o Salão Paranaense e, como foi aceita, me animei e mudamos para Curitiba. Eu continuei como jornalista na área sindical e fazendo freelas, inclusive trabalhei como fotógrafo da Folha de Londrina, na sucursal de Curitiba. E continuava fazendo arte em casa.

FB — Outra coisa importante: se o seu trabalho não tem cor e você sente falta dela, em compensação nele sobra textura. Por isso digo que, mesmo no desenho e na pintura, você começa a tratar da questão espacial; a sua obra é tátil. Não sei se você viu lá no ateliê que, por várias vezes, eu passei a mão em seus trabalhos, dá vontade de tocar nos desenhos... não se deve fazer isso, né? A gente faz na casa do artista, porque ele não liga, mas não se pode fazer. Mas dá vontade de sentir a textura, pegar na massa.

JA — É por isso que eu falei que gostaria de fazer preto sobre preto em várias camadas, por causa do volume, da tatilidade.

FB — E essa tatilidade conduz você à ideia de espaço. Então, mesmo que trabalhe no plano,  são vários espaços que você cria, uma superfície de inscrição. O que me chamou atenção de imediato em seus primeiros trabalhos foi que havia uma construção de uma espécie de parede, uma rocha, e sobre a textura irregular, arenítica, você inscrevia elementos, colocava um símbolo, às vezes sozinho, e esse símbolo, feito de uma maneira quase gestual, lembrava uma forma de arado quase artesanal, instrumentos não industrializados. Lembra desses quadros? Eram formas escuras sobre uma textura que dava vontade de tocar, parecia uma parede de uma caverna onde se inscreviam os elementos. Acho que você já estava trabalhando com massa de papel. Tinha areia também?

JA — Era massa de papel, com um pouco de areia, às vezes. Mas, veja bem: quando você está no início do processo não sabe bem os rumos que as coisas vão tomar. As informações que eu tinha quando morava em Maringá vinham basicamente dos cadernos culturais dos jornais e de revistas ou de exposições em São Paulo e no Rio. Quando vim para Curitiba, com três filhos e pouco dinheiro, comecei a fazer algumas colagens... Aí, você começa a conversar em vernissages, juntar informações, ver, observar, e comecei a perceber que podia fazer com papel reciclado um monte de coisas. Havia na época, entre 1989 até 1995, poucos catadores de papel, havia papel em abundância nas ruas e comecei a reciclar. Foi o papel reciclado que me permitiu fazer essa massa que é justamente o material em que eu expressava os signos e símbolos, me permitia esse tipo de coisa.

FB — Mas, era muito bem feito, não é? Você dominava a técnica, como sempre. Você é um artesão.

JA —O material que eu desenvolvi com essa técnica continua aí, conservado, a forma original não mudou.

FB — Você gosta dessa manipulação do material?

JA — Gosto. De costurar, construir, mexer, tal. Não sou o cara que gosta de esculpir a pedra ou a madeira, não.  

FB — Gosta da modelagem, de colocar, trabalhar com a mão.

JA — De torcer, de costurar. Não quero soldar, eu quero amarrar.

FB — Aí é que você me traz a outra questão. Ao mesmo tempo que essa massa dava uma estrutura sólida ao trabalho, que parecia uma parede, era um material efêmero, por ser massa de papel, o papier-machê. Então, o seu trabalho sempre mostrou exatamente esse diálogo com o elemento efêmero. Você trabalhou com o material pobre, a limalha de ferro, a terra...

JA — Os resíduos...

FB — Os elementos considerados não nobres na pintura. Pintura sobre tela, tinta a óleo, pincéis são considerados os materiais nobres. Picasso, quando começou a colocar até xepa de cigarros nos trabalhos dele, era criticadíssimo, pois aquilo não era considerado material de pintura. Ele deu estatuto de nobreza a isso. Porque daí, de repente, todo mundo começou a fazer esse tipo de colagem, massa de tinta, volume, até pela colocação de terra, areia etc. Então, o seu trabalho se prende a isso, à ideia do efêmero. Porque você gosta do que aparentemente é efêmero, do lixo...

JA — Do orgânico.

FB — Ah, do orgânico. Ah!

JA — Aí fui pensar porque eu gostava mais dos materiais orgânicos: tecido, papel, madeira, ferro.

FB — Mas, então, por que o alumínio?

JA — Aí é uma outra questão.

FB — Tá, então vamos resolver a do orgânico.

JA — Porque se eu for utilizar o bronze, não vou deixar ele brilhando, quero que ele tenha uma aparência mais orgânica.

FB — Estou chegando perto. O que me parece até aqui é que você trabalha muito com a questão da memória. Você refaz. Acho que a arte contemporânea até certo ponto é trabalhar com a própria memória da arte. Como disse você: “Tenho vontade de pintar, por que o que faz o artista? Pinta. Pinta o quê? Pinta a paisagem.”. Interessante essa sua colocação. E daí, na sua pintura, sempre permanece essa imagem da memória. E vem isso até hoje. Você acabou de dizer que gosta de cortar, de dobrar. Por exemplo, no primeiro momento que eu vi suas Tramas em fundição de alumínio, pensei que aquelas marcas fossem de ferro e você disse que eram de corda. Então, fica essa coisa bem artesanal, manual, de manipular o material deixando-o o mais maleável possível. Quando você disse que gosta dos materiais orgânicos, e citou o ferro, eu pensei: “Mas, será que o ferro também é um material orgânico?”. Claro que é. Ele também está na natureza, vai se modificar...

JA — É orgânico no sentido de que ele vai se modificar, se oxidar... O bronze não, o alumínio não, o inox não.

FB — Estávamos conversando sobre a maneira de conservar a ferrugem. Existe uma forma de conservar o material enferrujado? A gente estava falando do Richard Serra.

JA — Sim, existe, fica uma cor, algo de aparência meio orgânica, meio sintética.

FB — Mas é bonito.

JA — É. Mas parece um pouco sintético.

FB — Para o técnico, como você, que trabalha com o material, quando vê uma obra dessas já deve reconhecer. Mas, para a gente que vai ver, que não tem essa competência de trabalhar com o material, ainda parece uma ferrugem sólida, que está parada ali como se tivesse sido pintada de ferrugem.

JA — O que interessa é a constante modificação da ferrugem, enquanto processo de transformação. Que tem algo a ver com a terra. Teve uma época em que eu andei catando terra por aí. Não fui muito longe nisso, mas tenho ainda um monte de latas com terras de todas as cores. Depois parei, fui fazendo outras coisas, caminhando...

FB — Com relação às Tramas. As primeiras eram mais efêmeras ainda, não é? Elas surgiram em “Faxinal das Artes” (grande evento-oficina, organizado em Faxinal do Céu, interior do Paraná, em 2002)?

JA — Um pouquinho antes.

FB — A primeira Trama que vi foi em Faxinal, aquela pendurada sobre o lago.

JA— Fico pensando: de onde vem tudo isso? Quando a pintura vai se tornando volumosa, e eu percebi isso no final dos anos 1980, quando fazia colagens, agregando material ainda de forma bem primitiva; aí já comecei a fazer uns objetos pretos, grandes, com a pasta de papel, que saíram do bidimensional. Passei a construir as estruturas ou de ferro ou de madeira para suportar a pasta de papel, a massa, que eu também usava no bidimensional. Em algum momento percebi que aquelas estruturas já não precisavam da massa. Elas se bastavam. E daí comecei a construir objetos (casulos e ferramentas) com tecidos. Depois, passei a usar só o tecido. O processo foi evoluindo passo a passo. Veio da pintura, que foi se avolumando, se transformou em casulos e totens, que se tornaram casulos com tecido e papel, depois foi permanecendo apenas o tecido: “Ah, tá bonito, vamos abrir aqui, deixar maior”. Aí surgiram as Catedrais, que eu expus na Casa Andrade Muricy (em 2000) e então fui para Faxinal e fiz aquela peça que foi pendurada sobre o lago.

FB— Então, as Catedrais eram as Tramas?

JA — Eu chamei de Catedral na época. Achava que elas ocupavam muito espaço. Queria construir, mas me perguntava “onde vou guardar tudo isso?”. Aí levei uma exposição (Sagas) para a Alemanha, em Berlim, organizada por João Henrique do Amaral, em 2002, com trabalhos enormes. Resolvi inventar uma solução para transportar, pois era muito difícil. Uma coisa maluca...

FB — Você inventou uma obra que pedia um espaço grande. Só que era efêmera e você não podia deixar ao ar livre. Criou uma contradição.

JA — E além do mais era difícil de transportar para exposições.

FB — Você lembra que, quando a colocou sobre o lago, ficou maravilhosa. A tentativa de reconstituir aquela imagem na Casa Andrade Muricy, em 2001,  não deu muito certo, pois o trabalho era realmente para um grande espaço. Chamo sua atenção para a gente não colocar muitas obras agora nessa exposição (Im)Permanências (Casa Andrade Muricy, Curitiba, 2012); se puser demais, elas fecham o espaço, exigem que se passe em volta.

JA — Não sei se você lembra da exposição que fiz no Memorial da Cidade (2007), quando coloquei alguns objetos (totens pretos em tecido) sobre uma poça de óleo queimado, como efeito de espelho. Mas o material também é difícil, embora tenha gostado do resultado... E, então, construí as Tramas com cordas para facilitar o transporte. Gostaria de levar essa obra para um grande espaço — de colocar a experiência de Faxinal de forma permanente sobre um lago, um espaço assim. Mas, a durabilidade é muito pequena. Porque até então eu gostava muito da ideia do efêmero. Mas também queria que esse trabalho permanecesse mais. Uma contradição. Tinha que achar uma saída, simplesmente para torná-lo mais perene. Daí começou a questão da fundição em alumínio.  

FB — Você me mostrou uma série de desenhos que produziu em Faxinal do Céu. Você fez aquelas formas lá, mas já tinha iniciado antes o que chamou de Catedral, não é?

JA — Ah é, pois é, você vai cutucando minha memória, vou lembrando.

FB — É a minha função cutucar sua memória.

JA — Era primitivo ainda, mas foi aquela série de desenhos que me levou às Catedrais. Fui agregando um casulinho ao outro no papel – uma sanfona de casulos – e quando saiu do papel virou a Catedral, junto com a experiência da construção.Uma coisa puxa a outra. O desenho não é tão forte quanto a pintura, mas ele contribuiu. Um dia uma pessoa me disse: “Você constrói pensamentos”.

FB — Acho que tem muito disso. O trabalho sobre memória é justamente construir pensamentos, é o pensar.

JA — Acho que meu trabalho é exatamente isso, fico pensando nele ali naquele momento. Não estou pensando em um discurso engajado, em uma questão social ou política...

FB — Não, não, veja, é o seu pensamento. A arte não é panfletária nunca, ela vai fazer outro discurso. É o que você está me falando hoje. As questões que você transforma em forma são o que considero interessante. Porque, veja, essa sua ligação com o espaço vai aparecer nos Casulos de uma forma ainda tímida. Eles são espaciais sim, mas ainda são contidos. Eu acho que eles explodem nas Tramas. Aí você coloca essa preocupação com a construção. Sim, é a construção do pensamento. Você foi preparando esta abertura para ela, de repente, explodir.

A tomada de consciência do espaço. Me parece, muitas vezes, que além de fazer parte desses fenômenos originários, que você coloca aí, você vivia nos grandes espaços naturais; esses objetos que você coloca na pintura vêm dos grandes espaços. Mas, ao mesmo tempo, são memórias do vazio, e aí seu trabalho se liga um pouquinho com o trabalho do Chillida (Eduardo Chillida, escultor espanhol, 1924-2002). E são, eu vou usar o termo porque não acho outro, o medo angustiante de alguma coisa. Tem alguma coisa por aí?

JA — (Riso)...

FB — Cuidado que eu sempre vou pegando as coisas...  Não precisa confessar nada, eu gosto de analisar os trabalhos. E você me diz: “Mas eu não vejo nada disso nos meus trabalhos”. Mas, alguma coisa está lá, eu vou catando lá no fundo...

JA — Mas esse medo angustiante é de todo mundo...

FB — Claro, é universal. Esse vazio, não te passa pela cabeça? Eu, por exemplo, sou louco para que haja vida em outros planetas. Fico imaginando que não há vida, que eu estou sozinho no mundo. Todos pensam nisso de vez em quando. É angustiante. Mas, este estado de angústia vai atacar o efêmero: “pô, mas eu não vou deixar nada daí? Tudo que eu deixar vai desaparecer porque é efêmero”. Então, quando você resolveu passar essas Tramas, que são efêmeras, para o alumínio... é claro que você está querendo manipular a efemeridade delas. Quer manter a textura, sem perdê-la, mas está transformando-a em outro material. Mas poderia ter feito em ferro isso, ter feito em bronze.

JA — Mas aí entra também a questão econômica.

FB — O alumínio é um material que não traz uma tradição como outros que você usou até agora.

JA — A opção pelo alumínio é uma questão técnica: pela leveza, pela facilidade em fundir mais fácil que o bronze, pelo custo... uma peça daquele tamanho em bronze ficaria cara para meus recursos. Resolvi fazer uma experiência em alumínio para ver o resultado, para continuar ou parar e saber o que fazer depois.

FB — Eu achei interessante o alumínio.

JA — Eu também gostei.

FB — Só que ele contradiz seu percurso. Mesmo as Tramas são feitas com tecido, e alguns com uma cor um pouco de barro, o que dá sempre a ideia de um material mais  precário. O alumínio é tido como um material de procedimento industrial. Embora ele esteja na natureza, sempre proporciona um viés tecnológico. O bronze era fundido já na pré-história. Nesse sentido é que há uma ruptura. A entrada do metal acho que está justificada.Você começou também a fazer essas outras formas utilizando o metal. Aí você já está tentando romper com a ideia do efêmero. Já está querendo...

JA — Ficar.

FB — Fazer algo que permaneça.

JA — Mas não me tira a paixão pelo efêmero.

FB — Tenho impressão que não.

JA — Para obter esses objetos em alumínio, construo com o tecido. São lindas essas peças, tenho dó de queimá-las, mas quero fazer essa experiência.

FB — Senti a tristeza que te deu de perder o original: o original desaparecer para poder fundir em alumínio. Você queria que o original também continuasse existindo. Você me contou toda a técnica da fundição, porque no primeiro momento eu achei que toda aquela estrutura era de ferro... Pensei, “como é que ele vai queimar isso?”

JA — O original é a obra, e não é o que fica... Por ser tecido, com espessura fina, o alumínio corre mais, com bronze haveria mais dificuldade em fundir.

FB — Nessa condução que fizemos, quando você lança essas Tramas, as Catedrais, ficou bem claro que você é escultor. A paixão pelo espaço. Toda essa forma plana desemboca lá. Também deixou bem claro para todo mundo que você era o escultor do efêmero. Não parece que aí há uma contradição ao colocar, de repente, o metal? É claro que aí está a questão de você querer que essas obras possam até ser colocadas no espaço externo.

JA — Eu gosto do efêmero, mas não entrei nele com essa proposta da permanência ou do uso em determinados espaços. Entrei pela questão dos materiais orgânicos, das cores, texturas, formas. Eu não pensava na questão de que esse material não seria perene. Nunca pensei no quanto iria durar.  Até desmanchei várias coisas. Gosto da ideia da efemeridade também porque é uma questão natural nossa, nós também somos efêmeros. Há esse momento. E quando fui buscar outros materiais, senti a necessidade de ver o resultado do trabalho com outras matérias-primas. Estava fazendo com pasta de papel, agora quero ver com a pintura, tecidos, quero poder trabalhar com outros materiais também... como acrílicos.

FB — Não faça isso.

JA — Só para ver. Fibra de vidro, plástico. Ter uma experiência, ver o resultado, como estou vendo com o alumínio agora, mas não com uma certa paixão.

FB — Perde muito da possibilidade do material. Mas, veja: a partir do momento que você constrói uma obra e não perde nada de sua visão efêmera, porque ela mantém toda a textura, toda a riqueza que havia em seu material continua ali, e você começa a construir algo que pode ser exposto sem grandes problemas, você chega a um resultado. Essa é uma peça pronta que pode ser transportada assim e pendurada em qualquer lugar, dentro ou fora. Acho que foi uma saída muito interessante e interessante também é o caminho que você vai desenvolvendo para chegar aí. Não estou contestando o trabalho, dizendo que perdeu em qualidade, perdeu em qualquer coisa porque foi feito em alumínio. Não, pelo contrário, é outra forma. Só que de repente, todo esse percurso de trabalhar com o efêmero, agora se transforma. Já se transformou quando você começou a usar a manta metálica... Não sei se ela vai durar mais que o tecido, mas a principio a gente acredita que ela dure um pouco mais... Agora, quando você passa para o alumínio, dá um valor de permanência. E quer queira quer não, para o mercado isso é interessante. Por que é que não se compra uma Catedral? Porque não se sabe quanto tempo ela vai durar... 

JA — Eu vendi uma.

FB — Ah é, vendeu mesmo? Que legal! Para quem?

JA — O Rio Apa (Wilson Galvão do Rio Apa, escritor, teatrólogo, dramaturgo) se apaixonou por ela.

FB — Ah, só podia ser ele mesmo.

JA — Ele veio aqui no final do ano passado (2011), reviramos tudo no ateliê e ele disse: “Quero essa aqui!”.

FB — É uma figura importante. E tinha que ser uma pessoa desse tipo.  Vender em galeria esse tipo de trabalho é complicado. É uma obra grande, difícil de expor no interior e você não pode pôr no exterior...

JA — Acaba virando peça só de exposição: vai ser exposta e volta. Mas minha intenção era manter toda essa textura no alumínio, manter a forma, e também a cor, para ficar o mais próximo possível dessa efemeridade... se bem que passa a ser uma imitação...

FB — Não sei se é uma imitação... seria uma transferência de material. Se você começar a pintar aquilo da cor do tecido, aí seria imitar. Acho que a experiência foi interessante. Aí sim eu vou ter que discutir: você passa de um estágio para outro, sai do efêmero para algo que agora não é mais efêmero e, ao mesmo tempo, serve para colocar em qualquer material. Eu não vejo aí o sentido da imitação. Por que, veja: você sabe como aquilo foi feito; mas, eu, quando cheguei e vi, achei impressionante, por que não sabia como tinha sido feito. Pensei que fosse uma estrutura de ferro: “como é que ele fundiu isso aqui? Como é que o cara fez o molde disso aqui?” Até ia perguntar: posso ir lá ver o molde? Eu não tinha a menor ideia, até você me contar o que fez — simplesmente transferiu de um material mais frágil para um material mais consistente. Eu não usaria o termo imitação.

JA — Quando fiz o projeto pela Lei de Incentivo à Cultura, tinha intenção de levar as Tramas para um espaço público e pouca experiência em fundição. Aí fui conversar com as pessoas: com o Elvo (Benito), com o Moro (João), com o Basso (Adalberto Luiz) e com o Zardo (Faustino), que fazem muita fundição, e eles deram umas dicas legais. Mas, minha ideia era fazer aquilo que você inicialmente imaginou: produzir a forma em cima das Tramas, e elas não seriam destruídas. Após conversas e leituras, vi que não era possível sem destruir o original; colocando tudo no liquidificador, cheguei à conclusão que teria que construir e destruir. O efêmero se desfez de vez e deu vida a uma outra coisa.

FB — Você acaba de inserir uma informação importantíssima aqui: é o processo justamente da transformação. O original está lá, está lá dentro, ele ficou na alma do objeto, na memória do próprio produto. Você sempre trabalhou com memória.

JA — É, é isso mesmo, é a memória do efêmero. Legal! A gente nunca pensa nisso, vai fazendo.

FB — Se pensasse, não fazia. Se a pessoa tivesse que pensar para falar, nunca falaria, se pensasse na gramática etc.

JA — Então, a lagarta...

FB — Já produziu o casulo...

JA — Agora vira borboleta...

FB — Essa borboleta agora é outra coisa.

JA — Mas foi um longo processo, a gente vai juntando as coisinhas. Conversa com um, com outro, ele passa uma informação, uma habilidade técnica, junta-se tudo, vai se construindo junto com o pensar, acrescentando coisas.

FB — Ah, arte nunca pode parar...

2000

Técnica Mista sobre tela

Mixed Media on canvas

250cm x 90cm

Incentivo:

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