O diálogo entre o efêmero e o permanente
por Fernando Antonio Fontoura Bini
A obra plástica de José Antonio de Lima, desde 1986, se mostra como um desenfreado percurso com o desejo de controlar o tempo, é a luta do efêmero na sua eterna transformação, semelhante aos organismos vivos que existem das suas próprias mutações. A sua pesquisa está sempre agindo com as possibilidades de transformação da matéria, lembrando que “o processo do tempo é uma trama de efeitos e causas”, conforme Jorge Luis Borges.O trabalho de José Antonio, na sua contemporaneidade, quer mostrar como se dá o encontro do ser sensível dentro da obra de arte, a experimentação de formas e sobre as formas; a forma como processo na dificuldade de criar imagens e, com isso, a necessidade de verticalizar esta imagem. A imagem que quer voar, se libertar de sua forma, mas como no filme de Wim Wenders (As Asas do Desejo), estes “anjos” renunciam à imortalidade para poderem assumir as paixões humanas.Charles Baudelaire nos ensinou que a “modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável” (O Pintor da Vida Moderna). O “anjo” então é o de Walter Benjamin, é o anjo da história que tem seu rosto dirigido para o passado, para a memória, e que reconstrói, fragmento por fragmento, a alegoria da sua própria vida, que se recusa a explicar o mundo. Não há narrativa aqui, mas mesmo assim fala da ansiedade de construir o presente.Como que simplificando, ele nos conta a origem de seu trabalho: “A noção que eu tinha ..., eu queria desenhar, eu queria ser artista, e o artista faz o quê? Pinta, pinta paisagem ... e as primeiras paisagens que eu pintei eram rurais...” (José Antonio, 2011). As suas esculturas, pois José Antonio é, sem dúvida, escultor, fazem parte então da história da pintura, da sua história da pintura. Ele logo substitui a técnica clássica de pintar pelo uso de massas que produziam superfícies densas de aspecto corpóreo.Estes primeiros trabalhos, incluindo os experimentos com desenho, traziam um sentido de vazio e de uma nova espacialidade pelo seu domínio da textura. São pesquisas sobre a matéria que o levaram a fabricar um meio original à base de papel amassado e moído (papier maché), integrado com limalhas de ferro, com as terras e o grafite e, nesta matéria espessa, aparentemente arenosa, que ele tão bem sabe preparar artesanalmente, nesta textura disforme, o artista inscreve, incisa, entalha ou rasga, lembra ou faz referência ao muro e ao grafite, coloca signos ancestrais, memórias do tempo, sempre em franca oposição ao permanente.Este processo da fatura artesanal, a não distinção entre cor e matéria, o gesto criativo do artista, parecem querer que encontremos aqui uma certa mística, uma certa vivência espiritual, uma certa indagação pelo ser próprio da obra; nela não há perspectiva, não há modelo figurativo, surgem traços, letras, símbolos ou garatujas.O bidimensional destes trabalhos apela para a escultura, para o espaço tridimensional: “... gosto muito de fazer as esculturas pelo seu movimento, pelo seu desenho, que começa nos desenhos e na pintura”, diz o artista, e o seu desenho também é espacial.As primeiras esculturas vêm do material arquivado em sua memória, a dos primórdios na zona rural, dos instrumentos ou das ferramentas agrícolas, dos tecidos de algodão, das peneiras, que agora favoreceram a construção de seus simulacros, os Totens, que reproduzem as formas e cores das ferramentas, mas não possuem peso, são “falsas”, conforme o artista, a sua dureza é pura ilusão. Estas obras já solicitavam a tatilidade, faziam apelo ao sensível e a experiência tátil conduzia à ideia de espacialidade. Memórias gráficas das ferramentas e substratos da natureza inscritos numa superfície naturalizada. Os Totens são estruturas fechadas feitas de material reaproveitado revestido com a pasta de papel reciclado imitando o metal, de cor preta, grafite ou de óxido de ferro.José Antonio não gosta de esculpir (no sentido tradicional do termo), mas de manipular o material, reciclar a matéria, gosta da modelagem, do torcer, tender, não de soldar, mas colar, agregar. Por isso, a estrutura sólida dos Totens é falsa, eles são efêmeros, feitos com materiais pobres como o papel, o tecido, a limalha de ferro, as terras ou a sucata de materiais diversos, mantendo sempre o diálogo como o orgânico, com o provisório. “As imagens imaginadas são antes sublimações dos arquétipos do que reproduções da realidade. E como a sublimação é o dinamismo mais normal do psiquismo, poderemos mostrar que as imagens saem do próprio fundo humano.” (Gaston Bachelard, A Terra e o Devaneio da Vontade, p. 3)José Antonio afirma: “O que me atrai é a constante mudança da ferrugem, enquanto transformação, e que tem a ver com a terra.” (2011) Essas transformações, essas possibilidades das “metamorfoses constantes” deixaram nascer os Casulos, verdadeiras metáforas das mutações que esperam a transformação em borboletas. Sempre presente a preocupação com a duração, com o tempo que passa e o tempo que desgasta e recria o material.A textura, a trama e a urdidura: a laçada é o primeiro movimento para se dar o nó. “(...) Ponto de uma laçada, meio ponto, (...) pontas de agulha que revolvem a memória” (Dalton Trevisan, “Ponto de Crochê”, em Novelas nada Exemplares). Gosta do trabalho com as mãos, amassar o papel, dobrar o arame ou o ferro, mas também de amarrar, dar o nó, tecer, urdir e construir texturas. Faltava-lhe romper os limites dos espaços, interno e externo.Suas formas lhe solicitavam o grande espaço ao ar livre e foi assim, em 2002, que o artista liberou tudo isso colocando as suas formas na liberdade total do espaço aberto. Como nuvens ou borboletas, elas eram recortes brancos no céu azul, refletidas no espelho d’água de um lago. O artista que já havia dialogado com o tempo, agora conquistava o espaço. Assim surgia o que ele denominou de Catedrais Espaciais e delas as Tramas. São trançados, costuras e amarras de fios grossos e tecidos que formam objetos tridimensionais vazados no espaço, como se estivessem desestruturados e sem forma definida, onde o acaso está em jogo.“As Catedrais ainda tinham o caráter de uma estrutura tradicional, no sentido de constituírem um núcleo estrutural ao redor do qual o espectador transitava para descobrir seus vários ângulos e formas. Nas Tramas este núcleo desapareceu; a obra, então, cresceu em todas as direções, sendo formada por várias peças construídas apenas com corda e tecido esticados, ligadas entre si e à estrutura do espaço em que se inserem.” (José Antonio de Lima, 2010)Mas o desenho e a pintura não foram esquecidos, pois “os desenhos sobre papel fazem parte do desenvolvimento das Catedrais, estão interligados. É como um pré-projeto, às vezes eu desenho antes, às vezes eu desenho depois”. (José Antonio, 2006)Lembro ainda de Antoni Tapiès ao dizer: “Não posso formar uma imagem sem que ela contenha uma idéia, uma sugestão que venha da vida e que possa nos ajudar a reconhecer e exprimir a verdade” (1989). As imagens estão sempre cobertas com um véu, a visão humana só permite a imagem superficial das coisas, é necessário cavar fundo, romper a superfície, para entrar na realidade do artista. Há muito conteúdo para ser desvendado e é somente nossa experiência como indivíduos que possibilitará penetrar, ainda que obscuramente, nos sonhos íntimos do artista.José Antonio desperta em nós a curiosidade da criança que quer destruir o seu brinquedo para desvendar o mecanismo secreto dentro dele. Como romper com a superfície da sua obra? É ainda Bachelard quem nos adverte “que todo o conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema” (A Terra e os Devaneios do Repouso, p. 10), é com o material e a sua manipulação que ele constrói sua poesia. Para desvendá-la, deveremos desvendar a matéria de que é feita.A pesquisa do material é essencial para José Antonio, mas é sempre necessário acrescentar algo além, algo emotivo, algo que venha da imaginação. Estas obras já requeriam os grandes espaços livres, os espaços da natureza, mas por sua efemeridade, por sua fragilidade material, eram sempre obrigadas a serem confinadas em ambientes fechados. O próprio artista afirma que gostaria de leva-lás as suas obras para os grandes espaços da natureza (com base nas experiências realizadas em 2002, em Faxinal do Céu, PR).Ele continua afirmando que gosta do efêmero, mas não entrou nele simplesmente porque é efêmero, e sim porque gosta de utilizar os materiais orgânicos, que são vivos e que se transformam, além de também ser atraído pela sua cor, pela sua textura ou pela sua forma. Tudo tem a ver com a vida humana que também é efêmera.Toda a sua trajetória esteve ligada à busca de materiais, sempre manteve a intenção de trabalhar com novos materiais – “se a lagarta produziu o casulo, agora é a vez da borboleta”, afirma ele. Foi um grande percurso para chegar até este ponto, agora terá que quebrar a limitação do espaço, e por que não, do tempo. José Antonio se serve de materiais pelas suas qualidades plásticas, mas também físicas, pela aptidão que estes materiais têm de jogar com a luz e o espaço circundante, sem abandonar a intenção de manter a forma e a textura, ou mesmo a cor, o mais próximo dos tecidos.Por suas características plásticas e técnicas, o alumínio foi o material escolhido, ele é o primeiro dos metais não ferrosos, é claro e luminoso. Sua leveza, sua inalterabilidade plástica, sua facilidade decorativa e a sua grande resistência mecânica respondem ao que o artista espera. Assim, o efêmero vai se diluir no perene, no permanente. Para que a nova obra surja, é necessário que a trama seja destruída. O trabalho que lhe deu origem desaparece, fica na memória do novo – morre para dar origem ao novo.O alumínio já foi utilizado primeiramente por Lazlo Moholy-Nagy, em 1926, para realização de obras artísticas, mas foram os minimalistas, depois dos anos 60 do século XX, que, ao pesquisar as relações corporais e visuais dos objetos, começaram a utilizar materiais como a tela galvanizada, o zinco e o alumínio, que são materiais que apelam ao jogo puramente dos sentidos. A qualidade de fluidez do alumínio fundido oferece ao artista todas as possibilidades técnicas de reproduzir com detalhes a textura, na qual a memória da trama é eternizada pelo metal.Mantida a aparência, a forma orgânica, efêmera, que outrora esteve dependente do tempo, o qual se encarregava de suas transformações, agora resiste pela sua necessidade da permanência, busca o máximo possível de imutabilidade e, das borboletas, formas leves e voadoras, surgem estas fantasmagorias, semelhantes às texturas das membranas dos morcegos notívagos.São registros, objetos-documentos, que podem ser guardados e não temem a destruição pelo tempo. Assim eles venceram o tempo, mas não venceram ainda o silêncio que é inerente à obra de José Antonio de Lima.
Fernando Antonio Fontoura Bini*, em Abril de 2011.
*Curador, crítico de arte e professor de História da Arte, Fernando Antonio Fontoura Bini é bacharel em Pintura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná – Embap (1969), com especialização em Conservação e Restauração do Patrimônio Histórico pela Universidade Federal do Paraná UFPR (1971) e mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR (1984). É professor adjunto III da Universidade Federal do Paraná e professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
“Lembro-me do medo que
tinha do papel em branco.
Um dia aprendi a fazê-lo com as próprias mãos. Foi uma revolução.
Hoje somos amigos inseparáveis.”
(Otavio Roth)

Tramas na Exposição Casa Andrade Muricy/MAC-PR, Curitiba 2012

2001
Catedrais EspaciaisTecido e ferro
Cloth and iron
130cm x130cm x 300cm

2004
Técnica mista em papel
Mixed media on paper
119cm x 42cm

2001
Catedrais Espaciais
Tecido e ferro
Cloth and iron
80cm x200cm x 150cm

2001
Catedrais Espaciais
Tecido e ferro
Cloth and iron
130cm x130cm x 300cm