
Com as cores do cotidiano e dos sonhos
por Nilson Monteiro*
No jeito manso, olhos arregalados e tímidos, voz de riacho, José Antonio de Lima denuncia o coração mineiro, nascido, há 39 anos, no meio das montanhas da Serra da Canastra, em Sacramento, entre Uberaba e Araxá, nas Minas Gerais. Os traços quase franciscanos de uma alma da roça brasileira, onde aquietou-se até os 18 anos, e a vontade de aprender mais que o ginásio rural, misturaram-se ao agudo do dia-a-dia urbano. Pronto. Os olhos saltados para o mundo, querendo tudo e nada. Eis um corpo/espírito incomodado de artista.
Foi roceiro, bancário, estudante de Comunicação Social, desenhista, fotógrafo, arte-finalista, foi. A marca do artista/arteiro, criador, provocador, havia calado fundo. Começou a desenhar cedo, nos bancos da escola primária, e a inquietar-se. Até os 18 anos morou em um sítio, em Grande Rios, no norte do Paraná, onde tingiu sua alma da mesma pureza das montanhas mineiras. Mais tarde, mesclaria os objetos enegrecidos pendurados nas paredes de sua adolescência rural com o fascínio de um tubo de pasta dentifrícia esmagada contra o asfalto das cidades. O fogão a lenha, no sítio, e as tampas de bueiro, nas cidades, parece que se misturaram na minha vida e naquilo que faço, comenta, enfiado em seu atelier.
Há seis anos, virou Zé Antonio. Só. Como todos o conhecem, chamam. Assumiu a arte de fio a pavio. Apaixonado pelo que faz. Passou do óleo sobre o papel e do figurativo, com que pincelou seu didatismo de início de carreira, a experiências inúmeras, tão inquietantes quanto. Esqueceu de vez o diploma de jornalista, da Universidade Estadual de Londrina, para fincar o pé na estrada da arte. Das esculturas fez morada de destaque no seu conflituoso diário de artista. Qualquer profissão, especialmente a arte, merece dedicação 24 horas por dia. É uma pena que não se possa trabalhar e viver daquilo que se gosta no país, resmunga, mineiramente.
A arte de Zé Antonio não é para ver, lamber e esquecer. Não dá. Incomoda. O cotidiano e o sonho transferidos para as telas e esculturas espetam a sensibilidade. Com esta mesma dose poética, ele já participou de inúmeras exposições coletivas e de quatro individuais, além de ter colecionado prêmios, uns significativos e outros nem tanto, que inscrevem seu nome na existência e memória do fazer artístico do Paraná. Embora sua proposta não tenha a ver com o local, tempo, lógica etc.
Enfiado em meio às suas criações, tão instigantes quanto a vida, Zé Antonio recicla papéis (desde jornais a caixas de ovos). Dissolvidos por uma maquineta que ele inventou, misturando pedaços de liquidificador com peças de furadeira elétrica, eles são juntados a óxidos sintéticos, cola, grafite, massa corrida, cera, parafinas e a toda espécie de sucata, além de terra e areia, para se transformar em arte. Zé Antonio derruba fronteiras entre pintura, desenho, relevo e gravura. Assim como instala questionamentos com seus totens, também produzidos com material reciclado, cicatrizados de sinais místicos, dúvidas etc. De repente, o figurativo não é suficiente. É preciso buscar a alternativa não só no fazer, mas no apresentar novas formas texturas, concepções. Um pedaço de arame pode significar muito mais que um pedaço de arame. Assim como uma porção de terra, roxa ou branca, negra ou amarela, lembra Zé Antonio.
A caminho da paz e do conflito, melecado de cores, sem vacinas contra influências e experiências, não há volta para este vício. Zé Antonio está expondo, no SESC Paulista, em São Paulo, nacos de sua identidade: 20 trabalhos, entre esculturas e pinturas. Antes, em janeiro, os norte-americanos de São Francisco poderão conhecer três de suas esculturas e uma dúzia de seus quadros na Galeria L&B Institutional Property Managers. A atemporalidade, introversão, provocação, agressão, comunhão de sua arte estão na estrada. No mundo. O fazer do artista provoca a curiosidade. Quem duvidar, que se aproxime.
O Estado do Paraná, Almanaque, Curitiba, domingo, 17 de abril de 1994.
*Jornalista e escritor paulista radicado no Paraná, iniciou sua carreira em Londrina em jornais como Diário de Londrina, Novo Jornal e o lendário Panorama. Foi editor do Caderno 2, da Folha de Londrina, referência em jornalismo cultural do país, e da Gazeta Mercantil. Passou ainda pelo jornal O Estado de São Paulo e pela revista Istoé. Foi assessor de comunicação do extinto Banco Bamerindus, superintendente de comunicação da Cohapar, assessor de comunicação da Associação Comercial do Paraná e assessor de comunicação do governador do Paraná Beto Richa. Em 2011, recebeu o Prêmio Sangue Bom por seus 40 anos de jornalismo e, em 2012, o Prêmio de Cidadão Honorário do Paraná, pela Assembléia Legislativa do Estado.